quinta-feira, março 30, 2006

Portas da Percepção.

As gotas encontram na minha face um recreio fácil.
Inquilinas do firmamento, escolheram sentir o calor da carne
e a sofreguidão com que devoram a vida é maestrina
da real dança que não acaba com a morte.
Dançam comigo, ouço o gritar ondulante daquela
apaixonada serpente que se me enrola na espinha e
me faz seus os seus olhos.

Sinto o sangue fervilhar
por todo o meu corpo em febril alucinação,
todas as portas foram feitas para serem abertas
mesmo apenas as que são descobertas
pela minha imaginação

e toda a minha vida será em vão
se não vir o que não foi visto
se não escutar o que não foi escutado
se não sentir o que não foi sentido
se não viver o que não foi vivido

E disto Ele ter-se-ía rido
e contado:
"Dança até caires para o lado,
pois muitos são
os que a vida levam em vão
sem nunca terem experimentado
o que é pela própria vida ser-se comido"

segunda-feira, março 27, 2006

O sino.

O sal daquele lugar escuro penetrava-me as narinas.
A lua acabara de desvelar o seu manto.
Sentei-me. Fechei os olhos.
Escutei o grave retinir de um sino que também
acabara de acordar. Entoou um compassado mantra
invitatório e quedou-se à escuta, como eu.
A dança começara. Dispersa, retorcia-se agonizada na
sua própria claustrofobia: - "Urge celebrar!", bradou.
Permiti sem aquiescer. E eis que as ondas se ergueram
em ambos os lados, qual cortina ansiosa por revelar a
música que se prepara por detrás do cenário, e um delicado
eflúvio colorido jorrou por entre as minhas pálpebras,
perfumando o negrume monocórdico da minha pele.
Sorri. Reconheci com ternura esta imagem que repetidamente
deambulara pelos meus olhos desde o dia em que me fizeram
prisioneiro. Esperei.
O sino tocou outra vez. A dança cessou. Era a minha vez
de celebrar. Aquiesci.
Com certeza não iria falhar novamente.
Mas eis que o som estridente de um ferrolho enferrujado
dilacerou o silêncio que de repente se revelou húmido, e alguém entrou.
Era o sineiro, a avisar-me que
a minha hora tinha chegado.

sábado, março 25, 2006

Silence.

There are some qualities - some incorporate things,
That have a double life, which thus is made
A type of that twin entity which springs
From matter and light, evinced in solid and shade.
There is a twofold Silence - sea and shore -
Body and soul. One dwells in lonely places,
Newly with grass o'ergrown; some solemn graces,
Some human memories and tearful lore,
Render him terrorless: his name's "No More."
He is the corporate Silence: dread him not!
No power hath he of evil in himself;
But should some urgent fate (untimely lot!)
Bring thee to meet his shadow (nameless elf,
That haunteth the lone regions where hath trod
No foot of man), commend thyself to God!


Poe.

Obras.

É engraçado como o homem sente necessidade de ordenar o mundo, de sentir a sua organização traduzindo-o através de cadeias intermináveis de fórmulas matemáticas de uma precisão inacreditável, mas continua a achar desnecessário regrar o seu próprio ser.

Mas benditos aqueles que procuram a precisão exterior, pois (só) através dela regram a interior.

Truísmo?

De um modo geral, é verdade que os sábios de todos os tempos disseram sempre a mesma coisa, e os idiotas, isto é, a grande maioria de todos os tempos, fizeram sempre a mesma coisa, isto é, o contrário, e será sempre assim. Por isso Voltaire diz: "Deixaremos este mundo tão idiota e tão mau como o encontrámos quando viemos a ele".

in , SCHOPENHAUER, Arthur, "Aphorismen zur Lebensweisheit" (Trad. Port: "A Arte de Viver", Rés-Editora)




(Será?)

terça-feira, março 21, 2006

Ilusão interrompida.

A cálida reverberação do suor
que pinga de uma nota esforçada,
arrepio gélido que enrubesce na disforia
de um sonho interrompido,
estremecido, clama eufórica pelo
perfume da ausência disfarçada,
amada, qual nefelibata que numa
manhã de Outono desmaia ao ouvir
o clangor de uma cristalina gota
que sobre uma triste folha desprezada pelo vento
cai como prelúdio daquela última chamada,
que ilude o tempo
e a dor.

sábado, março 18, 2006

Touching The Void.



"Touching the Void is a tale of remarkable courage and determination that touches the place within ourselves that tells us that miracles can occur in our life if we are able to go beyond what we thought was possible and act as if our life depends on the result."

quarta-feira, março 08, 2006

Memória.

A probabilidade de sucesso de cada pessoa está directamente indexada à sua capacidade de memorização, faculdade que permite que o mundo externo coabite numa ruminância interna à própria pessoa. Faz reter o externo no interno, torna a volatilidade dos seres em algo de seu. No fundo, permite viver o mundo, encarnando-o, trazendo-o à sua pele.

Afinal, para raciocinar a pessoa precisa de matéria-prima.

Nota.

Uma força de vontade férrea opera milagres.

terça-feira, março 07, 2006

Às vezes.

Há quem peça a Deus para que a vida mude. Para que isto ou aquilo seja diferente, para que aconteça (ou não) determinado evento, geralmente importante (ou, se calhar, não). Às vezes, a pessoa promete algo em troca, caso a sua petição seja atendida. Às vezes, a petição é atendida. Às vezes, a pessoa reconhece, e também cumpre a sua parte. Às vezes, a pessoa continua a pedir para que algo aconteça, algo fora de si mesma, e assim por diante, continuando neste esquema sacrifício-recompensa.

Proponho um esquema diferente. É que parece-me que Deus atende sempre um pedido de mudança, desde que esta se efectue na própria pessoa.

Pede a Deus que te mude a ti, em vez de mudar o mundo. Vais ver que ele te atende sempre.




E não só às vezes.

Noite.



Afinal os telemóveis tiram mesmo fotografias.