quinta-feira, março 24, 2005

Criar.

O homem não é criador de nada. Sim, o homem não cria nada. Uma desculpa aos puristas, pois acabo de cair no vício linguístico do "se não cria «nada» é porque cria «alguma coisa»", mas creio ter-me feito entender.

A criação entendida aqui no sentido puro ex nihilo, a partir do nada, é algo que escapa do horizonte ontológico humano. Dizia uma frase do livro do post anterior que "essencialmente, e abstraindo das funções biológicas, o cérebro humano existe para analisar e gerar padrões". Apesar de mecanicista, e assim redutora, parece-me ser uma definição que desenha microscopicamente os laivos de criatividade de um poeta. Senão vejamos, a criação musical é uma combinação de sons (onde os próprios sons resultam da combinação/conjugação de materiais sonoros); a pintura resulta de uma combinação de cores (onde as próprias cores resultam de combinações/conjugações pigmentares materiais); a poesia, de uma combinação de palavras, e assim, de ideias. De acordo com esta imagem, a criação artística provirá da concretização de um determinado padrão presente na mente do criador. Parece fazer sentido.

Assim, parece que o génio artístico reside apenas na originalidade dos padrões analisados e gerados. Padrões nunca dantes considerados, e posteriormente concretizados. Apenas. Não deixa de ser um praticamente inesgotável "apenas", dado o praticamente infinito horizonte de possibilidades. A criação original artística será, portanto, nada mais que a concretização de um padrão que mais ninguém considerou. Esta é uma imagem positivista da criatividade humana, que provavelmente não repugnará os positivistas. Porque habitualmente se considera o horizonte criacional infinito é que parece confundir-se a ideia de "criação" em sentido estrito, puramente original, e "criação" em sentido lato, de originalidade indirecta.

Não nos iludamos, em qualquer dos sentidos. A persona é capaz de um horizonte de inesgotabilidade ontológica, no qual a priori participa duma dimensão espacio-temporal condicionante (ver Kant), dotada assim de um horizonte práxico específico. Não é mais nem menos que aquilo que é.

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O homem cria da mesma forma que o Ser supremo (Deus) ?
Só analogamente se pode comparar a criação humana à do Ser.

O homem cria sozinho?
A pessoa cria para. A alteridade é, ao mesmo tempo, destino e cúmplice da criação humana.

O homem criará de uma forma totalmente adequada, na qual encontra plena realização de si próprio?
Não creio. Só se realiza quem salta.

Em nome de que ilusão é que se continua a afirmar insistentemente o poder criador do eu?








O homem não é criador de nada.
Sim, não é criador, de nada.

quarta-feira, março 16, 2005

"Uma outra maneira de ser" - Elizabeth Moon.

Vencedora do prémio Nebula, e finalista do prémio Arthur C. Clarke 2003, “Uma outra maneira de ser” (The Speed of Dark em título original) é uma verdadeira delícia.

A história desenrola-se em torno de um curioso personagem, autista, com uma ingenuidade deliciosa, musicalmente desenhada num ritmo vivo, consciente, bonito. Incrivelmente metódico, ser comportamental e sentimentalmente metódico, é, simultaneamente, a sua particularidade mais apreciável e a causa do seu ostracismo, reforçado na sua natural admiração de padrões não, padronizados.

É-lhe proposta uma cura, um tratamento capaz de reverter e até eliminar o seu autismo. Um tratamento que fará com que ele deixe de ser quem é, para passar a ser outra pessoa mais, normalizada. Entenda-se que o ser não é estanque, mas trata-se aqui de uma genuína perturbação existencial, de repercussões experimentais irrevogáveis. Trata-se de um tudo, ou de um nada.

O vivenciar deste dilema compartilhado por uma série de amigos, o maravilhoso habitat que ele próprio desenhou, e a sua ingenuidade natural convidam o leitor a uma análise da sua própria «normalidade», da sua visão do mundo e da persona:
se da pessoa que enforma o eu, ou se do eu que enforma a pessoa.

“Normal, é um estendal de roupa…”.

quinta-feira, março 03, 2005

Le Gibet.



Que vois-je remuer autour de ce gibet?
FAUST.

Ah! ce que j'entends, serait-ce la bise nocturne qui glapit, ou le pendu qui pousse un soupir sur la fourche patibulaire?

Serait-ce quelque grillon qui chante tapi dans la mousse et le lierre stérile dont par pitié se chausse le bois?

Serait-ce quelque mouche en chasse sonnant du cor autour de ces oreilles sourdes à la fanfare des hallalis?

Serait-ce quelque escarbot qui cueille en son vol inégal un cheveu sanglant à son crâne chauve?

Ou bien serait-ce quelque araignée qui brode une demi-aune demousseline pour cravate à ce col étranglé?

C'est la cloche qui tinte aux murs d'une ville, sous l'horizon, et la carcasse d'un pendu que rougit le soleil couchant.

in "Gaspard de la Nuit",
Louis (dit Aloysius) Bertrand (1807-1841).
Interpretação raveliana de Ivo Pogorelich,
Deutsche Grammophon, 2002.

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