quarta-feira, agosto 31, 2005

Alteridade.

As pessoas dão-se umas às outras, ou simplesmente se toleram? Elas aceitam-se? Cada uma aceita a outra tal como ela é? Vamos devanear um pouco.

Partiremos do princípio de que cada pessoa é única e irrepetível no mundo. Logo, cada pessoa "é" distintamente. Repare-se com atenção: a pessoa é dinamismo, é vida, não é estanque, contém em si uma força centrífuga que a impele para o outro, de uma forma contínua, mas intrinsecamente dinâmica e, assim, mutável. Mas mutável a que nível? Mutável a todos os níveis excepto ao nível que efectua a mudança, o nível que realmente "É" distintamente, e que faz com que aquela pessoa seja aquela pessoa e não outra: o próprio Ser que decide ser de uma dada maneira e não de outra, segundo a liberdade que lhe é essencial. Por outras palavras, o Ser em cada pessoa é único (razão da sua distinção), mas este pode ser de múltiplas maneiras. Vamos portanto distinguir o Ser (que "É") do ser (que "é").

Assim, aceitar a pessoa simplesmente pelo que ela "é" é admitir que esta estagnou no tempo, e que não sabe ser de outro modo. Por outro lado, aceitar realmente o outro (como ele "É", como realmente distinto dos outros) é aceitar o seu "ir sendo", um devir que brota confusamente daquilo que a pessoa "É": um Ser que decide como ir "sendo". Naturalmente, isto é bem mais difícil que compactuar com um breve rol de pares virtudes-defeitos, estanque, até porque nada na vida nos faz prever a possibilidade de estes se inverterem. São tão efémeros como pó que à terra há-de retornar. Pelo contrário, o Ser próprio de cada homem, aquela suprema distinção entre os homens, não muda, porque duas pessoas nunca se confundem.

Logo, amar o outro tal como ele "É" é assumir um compromisso com uma vida, uma força, um dinamismo únicos. Só se responde a uma vida, força e dinamismo únicos com outra vida, força e dinamismo reconhecidos e amados em liberdade, com consciência suficiente para reconhecer, em si, a semelhança em relação ao outro que se ama. Ama-se uma vida quando a pessoa se assume como vida, e só quem se assume como dinamismo é capaz de amar outro dinamismo.

Amar o outro tal como ele "É" é laborioso, exactamente porque o outro, enquando "sendo", muda, inevitavelmente. A pessoa não "é" simplesmente, é algo mais. E é justamente esse mais que dá abertura ao imprevisível, e, logo, para a insegurança que lhe está naturalmente associada. Mas repare-se, esta insegurança natural só se alastra em dúvida em quem não se entrega apesar da imprevisibilidade.

É isto a fé. É isto a confiança: acreditar sem tudo ver (mas procurar tudo ver). É isto o Amor: reconhecer a entrega de si mesmo a um Ser que vai "sendo" livremente, amando-o exactamente pelo que ele vai "sendo", através do qual, lentamente, vai desvelando o seu próprio Ser.

Não queremos separar o Ser do ser. Formalmente distinguem-se, mas são apenas um centrado na pessoa. Ninguém "É" sem ser, ninguém "é" sem Ser.

As pessoas aceitam-se tal qual elas vão "sendo"? Só quem se aceita como pessoa que vai "sendo", é capaz de reconhecer e amar outra pessoa que vai "sendo". Nesta abertura não existe lugar para o preconceito, simplesmente, porque se reconhece o outro, enquanto "sendo", como algo dinâmico, não estanque, logo, não passível de ser catalogado preconceituosamente.

Mas, existirá algo que a pessoa vai "sendo" e que não mude? Terão razão as pessoas quando dizem que "fulano nunca vai mudar"? Existirá algo tão vincado no Ser que deixará marcas, indeléveis, no ser? Vamos deixar estas perguntas abertas à reflexão. Será que o homem tem poder suficiente para ultrapassar as referidas marcas através da vontade? Será que as circunstâncias da vida não têm poder suficiente para mudar a pessoa, mesmo que ela não queira?

Amar o outro tal qual ele "É" é amá-lo pelo que ele decide ir "sendo". Mas como ele não é capaz de o realizar estritamente sozinho, a pessoa que ama está co-implicada no ser dele. Logo, é, por isso, também responsável. Assim, a aceitação do outro não pode fugir da consciência de:
1. Reconhecer a sua unicidade;
2. Reconhecer a sua liberdade, e a responsabilidade co-implicada de quem o ama.

Assim, o outro nunca vai "sendo" de uma forma radicalmente independente da forma através da qual a pessoa que o ama vai "sendo". Desta maneira, se uma pessoa não aceita outra pessoa, não está também a aceitar, na outra, uma parte de si própria, pela qual é responsável. Desta forma, a referida parte pode ser identificada, trazida à consciência, e depois trabalhada.

Amar pede então responsabilidade. Requere maturidade. Faz crescer. Não é fazer o que apetece, nem é deixar que o outro aja de igual modo. O outro pode fazer uso do seu livre-arbítrio da forma que entender, mas só será realmente livre se estiver orientado para o Amor, endividando todos os esforços para fazer Ser a pessoa que ama, identificando-se com isso mesmo. Se, pelo contrário, uma pessoa coloca obstáculos ao Ser de outra (e isto implicará reiterados conflitos ao nível do ser), por vezes só o choque da ausência é capaz de iluminar quem sempre optou por não ver, porque a Verdade brilha, porque é sempre melhor Ser que não Ser.

As pessoas aceitam-se ou toleram-se? As pessoas aceitar-se-ão na medida em que quiserem crescer (porque há quem opte por não o fazer, por ignorância, ou pior, por preguiça). Repare-se que aceitar implica deixar o outro seguir o seu caminho, que pode ou não ser diferente do caminho da pessoa que o aceita.

Só cresce quem Ama. Só Ama quem cresce.




Apontamentos de uma noite encalorada, na Capadócia.

domingo, agosto 21, 2005

A descida do Senhor ao reino dos mortos.

Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos. Deus morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos.

Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte, Ele que é ao mesmo tempo seu Deus e seu Filho.

Entrou o Salvador onde eles estavam, levando em suas mãos a arma vitoriosa da cruz. Quando Adão, nosso primeiro pai, O viu, batendo no peito, cheio de admiração, exclamou para todos os demais: «O meu Senhor esteja com todos». E Cristo respondeu a Adão: «E com o teu espírito». E tomando-o pela mão, levantou-o dizendo: «Desperta, tu que dormes; levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará».

«Eu sou o teu Deus que por ti me fiz teu filho, por ti e por estes que nasceram de ti; agora digo e com todo o meu poder ordeno àqueles que estão na prisão: 'Saí'; e aos que jazem nas trevas: 'Vinde para a luz'; e aos que dormem: 'Despertai'.

«Eu te ordeno: Desperta, tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos. Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, minha imagem e semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em Mim e Eu em ti, somos um só.

«Por ti Eu, teu Deus, Me fiz teu filho; por ti Eu, o Senhor, tomei a tua condição de servo; por ti Eu, que habito no mais alto dos Céus, desci à terra e fui sepultado debaixo da terra; por ti, homem, Me fiz homem sem forças, abandonado entre os mortos; por ti, que saíste do jardim do paraíso, fui entregue aos judeus no jardim e no jardim fui crucificado.

«Vê no meu rosto os escarros que por ti suportei, para te restituir o sopro da vida original. Vê no meu rosto as bofetadas que suportei para restaurar à minha semelhança a tua imagem corrompida.

«Vê no meu dorso os açoites que suportei, para te livrar do peso dos teus pecados. Vê as minhas mãos fortemente cravadas à árvore da cruz, por ti, que outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso.

«Adormeci na cruz, e a lança penetrou no meu Lado, por ti, que adormeceste no paraíso e formaste Eva do teu lado. O meu Lado curou a dor do teu lado. O meu sono despertou-te do sono da morte. A minha lança susteve a lança que estava dirigida contra ti.

«Levanta-te, vamos daqui. O inimigo expulsou-te da terra do paraíso; Eu, porém, já não te coloco no paraíso, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore, símbolo da vida; mas Eu, que sou a vida, estou agora junto de ti. Ordenei aos querubins que te adorem como a Deus, embora não sejas Deus.

«Está preparado o trono dos querubins, prontos os mensageiros, construído o tálamo, preparado o banquete, adornadas as moradas e os tabernáculos eternos, abertos os tesouros, preparado para ti desde toda a eternidade o reino dos Céus».




In sancto et magno Sábbato: PG 43, 439.451.462-462. (séc. IV).

domingo, agosto 14, 2005

Recomendações de um génio.

Ivo Pogorelich once listed the four most important things he learned from Kezeradze:

"First, technical perfection as something natural.

Second, an insight into the development of the piano sound, as perfected by the pianist-composers of the late 19th and early 20th centuries, composers who understood the piano both as a human voice ... and as an orchestra with which they could produce a variety of colors.

Third, the need to learn how to use every aspect of our new instruments, which are richer in sound.

Fourth, the importance of differentiation."



São poucos os que passam da primeira.
São raros os que tomam consciência da última.

sábado, agosto 13, 2005

Amor.

Um acto centrífugo da alma que se dirige ao objecto num fluxo constante e o envolve numa cálida corroboração, unindo-nos a ele e afirmando positivamente o seu ser ("Pfänder").

in Estudos sobre o Amor, Ortega y Gasset.