domingo, novembro 13, 2005

Genial.



Simplesmente.

domingo, outubro 16, 2005

Coragem.

Alguém disse um dia que as histórias só acontecem àqueles que são capazes de as contar. Do mesmo modo, talvez, as experiências só se apresentam àqueles capazes de as viverem.

in O Quarto Fechado - A Trilogia de Nova Iorque, Paul Auster.

quarta-feira, setembro 28, 2005

Valores.

Qual é o país cuja orquestra é mais numerosa que o seu exército?

quarta-feira, agosto 31, 2005

Alteridade.

As pessoas dão-se umas às outras, ou simplesmente se toleram? Elas aceitam-se? Cada uma aceita a outra tal como ela é? Vamos devanear um pouco.

Partiremos do princípio de que cada pessoa é única e irrepetível no mundo. Logo, cada pessoa "é" distintamente. Repare-se com atenção: a pessoa é dinamismo, é vida, não é estanque, contém em si uma força centrífuga que a impele para o outro, de uma forma contínua, mas intrinsecamente dinâmica e, assim, mutável. Mas mutável a que nível? Mutável a todos os níveis excepto ao nível que efectua a mudança, o nível que realmente "É" distintamente, e que faz com que aquela pessoa seja aquela pessoa e não outra: o próprio Ser que decide ser de uma dada maneira e não de outra, segundo a liberdade que lhe é essencial. Por outras palavras, o Ser em cada pessoa é único (razão da sua distinção), mas este pode ser de múltiplas maneiras. Vamos portanto distinguir o Ser (que "É") do ser (que "é").

Assim, aceitar a pessoa simplesmente pelo que ela "é" é admitir que esta estagnou no tempo, e que não sabe ser de outro modo. Por outro lado, aceitar realmente o outro (como ele "É", como realmente distinto dos outros) é aceitar o seu "ir sendo", um devir que brota confusamente daquilo que a pessoa "É": um Ser que decide como ir "sendo". Naturalmente, isto é bem mais difícil que compactuar com um breve rol de pares virtudes-defeitos, estanque, até porque nada na vida nos faz prever a possibilidade de estes se inverterem. São tão efémeros como pó que à terra há-de retornar. Pelo contrário, o Ser próprio de cada homem, aquela suprema distinção entre os homens, não muda, porque duas pessoas nunca se confundem.

Logo, amar o outro tal como ele "É" é assumir um compromisso com uma vida, uma força, um dinamismo únicos. Só se responde a uma vida, força e dinamismo únicos com outra vida, força e dinamismo reconhecidos e amados em liberdade, com consciência suficiente para reconhecer, em si, a semelhança em relação ao outro que se ama. Ama-se uma vida quando a pessoa se assume como vida, e só quem se assume como dinamismo é capaz de amar outro dinamismo.

Amar o outro tal como ele "É" é laborioso, exactamente porque o outro, enquando "sendo", muda, inevitavelmente. A pessoa não "é" simplesmente, é algo mais. E é justamente esse mais que dá abertura ao imprevisível, e, logo, para a insegurança que lhe está naturalmente associada. Mas repare-se, esta insegurança natural só se alastra em dúvida em quem não se entrega apesar da imprevisibilidade.

É isto a fé. É isto a confiança: acreditar sem tudo ver (mas procurar tudo ver). É isto o Amor: reconhecer a entrega de si mesmo a um Ser que vai "sendo" livremente, amando-o exactamente pelo que ele vai "sendo", através do qual, lentamente, vai desvelando o seu próprio Ser.

Não queremos separar o Ser do ser. Formalmente distinguem-se, mas são apenas um centrado na pessoa. Ninguém "É" sem ser, ninguém "é" sem Ser.

As pessoas aceitam-se tal qual elas vão "sendo"? Só quem se aceita como pessoa que vai "sendo", é capaz de reconhecer e amar outra pessoa que vai "sendo". Nesta abertura não existe lugar para o preconceito, simplesmente, porque se reconhece o outro, enquanto "sendo", como algo dinâmico, não estanque, logo, não passível de ser catalogado preconceituosamente.

Mas, existirá algo que a pessoa vai "sendo" e que não mude? Terão razão as pessoas quando dizem que "fulano nunca vai mudar"? Existirá algo tão vincado no Ser que deixará marcas, indeléveis, no ser? Vamos deixar estas perguntas abertas à reflexão. Será que o homem tem poder suficiente para ultrapassar as referidas marcas através da vontade? Será que as circunstâncias da vida não têm poder suficiente para mudar a pessoa, mesmo que ela não queira?

Amar o outro tal qual ele "É" é amá-lo pelo que ele decide ir "sendo". Mas como ele não é capaz de o realizar estritamente sozinho, a pessoa que ama está co-implicada no ser dele. Logo, é, por isso, também responsável. Assim, a aceitação do outro não pode fugir da consciência de:
1. Reconhecer a sua unicidade;
2. Reconhecer a sua liberdade, e a responsabilidade co-implicada de quem o ama.

Assim, o outro nunca vai "sendo" de uma forma radicalmente independente da forma através da qual a pessoa que o ama vai "sendo". Desta maneira, se uma pessoa não aceita outra pessoa, não está também a aceitar, na outra, uma parte de si própria, pela qual é responsável. Desta forma, a referida parte pode ser identificada, trazida à consciência, e depois trabalhada.

Amar pede então responsabilidade. Requere maturidade. Faz crescer. Não é fazer o que apetece, nem é deixar que o outro aja de igual modo. O outro pode fazer uso do seu livre-arbítrio da forma que entender, mas só será realmente livre se estiver orientado para o Amor, endividando todos os esforços para fazer Ser a pessoa que ama, identificando-se com isso mesmo. Se, pelo contrário, uma pessoa coloca obstáculos ao Ser de outra (e isto implicará reiterados conflitos ao nível do ser), por vezes só o choque da ausência é capaz de iluminar quem sempre optou por não ver, porque a Verdade brilha, porque é sempre melhor Ser que não Ser.

As pessoas aceitam-se ou toleram-se? As pessoas aceitar-se-ão na medida em que quiserem crescer (porque há quem opte por não o fazer, por ignorância, ou pior, por preguiça). Repare-se que aceitar implica deixar o outro seguir o seu caminho, que pode ou não ser diferente do caminho da pessoa que o aceita.

Só cresce quem Ama. Só Ama quem cresce.




Apontamentos de uma noite encalorada, na Capadócia.

domingo, agosto 21, 2005

A descida do Senhor ao reino dos mortos.

Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos. Deus morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos.

Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte, Ele que é ao mesmo tempo seu Deus e seu Filho.

Entrou o Salvador onde eles estavam, levando em suas mãos a arma vitoriosa da cruz. Quando Adão, nosso primeiro pai, O viu, batendo no peito, cheio de admiração, exclamou para todos os demais: «O meu Senhor esteja com todos». E Cristo respondeu a Adão: «E com o teu espírito». E tomando-o pela mão, levantou-o dizendo: «Desperta, tu que dormes; levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará».

«Eu sou o teu Deus que por ti me fiz teu filho, por ti e por estes que nasceram de ti; agora digo e com todo o meu poder ordeno àqueles que estão na prisão: 'Saí'; e aos que jazem nas trevas: 'Vinde para a luz'; e aos que dormem: 'Despertai'.

«Eu te ordeno: Desperta, tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos. Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, minha imagem e semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em Mim e Eu em ti, somos um só.

«Por ti Eu, teu Deus, Me fiz teu filho; por ti Eu, o Senhor, tomei a tua condição de servo; por ti Eu, que habito no mais alto dos Céus, desci à terra e fui sepultado debaixo da terra; por ti, homem, Me fiz homem sem forças, abandonado entre os mortos; por ti, que saíste do jardim do paraíso, fui entregue aos judeus no jardim e no jardim fui crucificado.

«Vê no meu rosto os escarros que por ti suportei, para te restituir o sopro da vida original. Vê no meu rosto as bofetadas que suportei para restaurar à minha semelhança a tua imagem corrompida.

«Vê no meu dorso os açoites que suportei, para te livrar do peso dos teus pecados. Vê as minhas mãos fortemente cravadas à árvore da cruz, por ti, que outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso.

«Adormeci na cruz, e a lança penetrou no meu Lado, por ti, que adormeceste no paraíso e formaste Eva do teu lado. O meu Lado curou a dor do teu lado. O meu sono despertou-te do sono da morte. A minha lança susteve a lança que estava dirigida contra ti.

«Levanta-te, vamos daqui. O inimigo expulsou-te da terra do paraíso; Eu, porém, já não te coloco no paraíso, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore, símbolo da vida; mas Eu, que sou a vida, estou agora junto de ti. Ordenei aos querubins que te adorem como a Deus, embora não sejas Deus.

«Está preparado o trono dos querubins, prontos os mensageiros, construído o tálamo, preparado o banquete, adornadas as moradas e os tabernáculos eternos, abertos os tesouros, preparado para ti desde toda a eternidade o reino dos Céus».




In sancto et magno Sábbato: PG 43, 439.451.462-462. (séc. IV).

domingo, agosto 14, 2005

Recomendações de um génio.

Ivo Pogorelich once listed the four most important things he learned from Kezeradze:

"First, technical perfection as something natural.

Second, an insight into the development of the piano sound, as perfected by the pianist-composers of the late 19th and early 20th centuries, composers who understood the piano both as a human voice ... and as an orchestra with which they could produce a variety of colors.

Third, the need to learn how to use every aspect of our new instruments, which are richer in sound.

Fourth, the importance of differentiation."



São poucos os que passam da primeira.
São raros os que tomam consciência da última.

sábado, agosto 13, 2005

Amor.

Um acto centrífugo da alma que se dirige ao objecto num fluxo constante e o envolve numa cálida corroboração, unindo-nos a ele e afirmando positivamente o seu ser ("Pfänder").

in Estudos sobre o Amor, Ortega y Gasset.

quinta-feira, julho 28, 2005

Cegueira.

Uma profundidade exagerada intriga e enfraquece o pensamento.

In "The Murders in The Rue Morgue", E.A.P.

sábado, julho 16, 2005

S.

Um entardecer que se faz memória à beira-rio, guarda em cada toque uma subtil fragrância, salgada, qual aperitivo que, em vez de prelúdio, se deixa ser essência. Que seria do prato principal sem o aperitivo?

domingo, junho 12, 2005

Dar-se.

A qualidade da vida da pessoa reduz-se, no fundo, à qualidade do contributo da pessoa para o mundo.

segunda-feira, maio 30, 2005

Ritmo.

Quanto mais a batida é irregular, mais se adequa à minha natureza. Como explicar então a adequação da irregularidade ao grito pela ordem?

sábado, maio 28, 2005

Sacrifício.

Todo o sacrifício no qual a pessoa não se reveja é uma perca de tempo. Mas ao rever-se, a pessoa ainda estará a sacrificar-se?

Pedra.

Só um caminho construido com factos é capaz de sonhar com a eternidade.

segunda-feira, maio 23, 2005

Daimon.

Por quanto tempo me deixará viver este demónio que trago dentro de mim ?

segunda-feira, maio 09, 2005

Dieu.

Quelqu'un demandait à Herr Keuner s'il existait un Dieu. Herr Keuner dit:

« Je te conseille de réfléchir à ceci: ton comportement changerait-il en fonction de la réponse apportée à cette question? S' il ne devait pas changer, alors nous pouvons laisser tomber la question. S'il devait changer, alors je pourrais du moins te proposer quelque aide en te disant:

tu es déjà décidé, tu as besoin d'un Dieu.»

Bertolt Brecht, Histoires de monsieur Keuner.

terça-feira, maio 03, 2005

Pärt.



De uma profunda espiritualidade, a música de Pärt é um desafio.
O som medita sobre si próprio; recolhe-se no silêncio derramado
na sensibilidade do ouvinte, tornado discípulo. Como se cada cristalina nota musical o interrogasse, e esperasse resposta. Como se cada tema só fizesse sentido no diálogo com ele.

A música que não interroga, queima tempo. E ser.


"Poderei comparar a minha música à luz branca, a qual contém todas as cores. Só um prisma pode dividir as cores e fazê-las aparecer; este prisma poderá ser o espírito do ouvinte."


"Alina" - Arvo Pärt, ECM New Series, Julho 1995.

sexta-feira, abril 22, 2005

Genuíno.

Eufemizar enruga.

terça-feira, abril 19, 2005

Navegar é Preciso.

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.



Pessoa.
Porque nunca é demais recordar.

terça-feira, abril 12, 2005


De uma simplicidade catártica, a imagem do amor faz parar o tempo. Aí se desvela a eternidade, nessa troca de olhares que da alma do outro perscrutam o desejo, e a ela se entregam, e confiam.

Só o amor é digno de fé.




"Wo de fu qin mu qin", de Zhang Yimou, 1999.

domingo, abril 03, 2005

A morte.

O limite dos limites. As desigualdades tornadas igualdade. Eis a altura em que o corpo desenha a sua última vertigem, cedendo, num único momento, silencioso, ao espaço e ao tempo. A corporeidade deixou de ser. Não deve haver maior momento de tomada de consciência de si próprio, que o momento em que se deixa de ser, de uma certa forma.

Esta singular ausência de sentido, talvez aparente, acaba por suportar o sentido vivificante da anima que sopra incessantemente desde que nasce. Sopra sem crer que realmente um dia terá de, pelo corpo, deixar de soprar. Sabemos que o outro morre, mas nem por isso estamos, de facto, convencidos, de que vamos também morrer. No ser não parece vir necessariamente incluída a ideia da sua própria cessação. Assim, não parece estar suficientemente viva em nós a ideia da nossa morte; pelo contrário, é preferencialmente ignorada, inevitavelmente temida, e, talvez por isso, respeitada.

Mas se a pessoa sabe que vai morrer (apesar de não crer realmente nisso), qual é afinal o sentido do seu ser? O que a move, o que a faz levantar-se? Por que fazê-lo? Será apenas um hábito? Será que a pessoa se levanta sem se lembrar de que pode não voltar a levantar-se no dia seguinte? Mas se assim acontecer, de que serve agir agora? Não será esta a questão?

A nossa fragilidade convida a repensar o sentido do ser. Se se pensar que o sentido se apoia apenas no resultado que é deixado à posteridade, seja através de que moldes for, a pessoa pode sentir-se mais tranquila, mas, de facto, não terá o problema resolvido. Até porque, conscientemente, pode a dado momento vir a encontrar-se numa situação-limite em que o resultado dos seus esforços será, aparentemente, nulo, ou pelo menos, francamente insatisfatório, um "fardo" para o outro.

Não importa o que se deixou, não importa o que se vai deixar. É o agora que grita por atenção. É o hoje que exclama: "Não sabes se durarás até ao fim do dia, levanta-te, e sê!"

"Levanta-te! Vamos!"

quinta-feira, março 24, 2005

Criar.

O homem não é criador de nada. Sim, o homem não cria nada. Uma desculpa aos puristas, pois acabo de cair no vício linguístico do "se não cria «nada» é porque cria «alguma coisa»", mas creio ter-me feito entender.

A criação entendida aqui no sentido puro ex nihilo, a partir do nada, é algo que escapa do horizonte ontológico humano. Dizia uma frase do livro do post anterior que "essencialmente, e abstraindo das funções biológicas, o cérebro humano existe para analisar e gerar padrões". Apesar de mecanicista, e assim redutora, parece-me ser uma definição que desenha microscopicamente os laivos de criatividade de um poeta. Senão vejamos, a criação musical é uma combinação de sons (onde os próprios sons resultam da combinação/conjugação de materiais sonoros); a pintura resulta de uma combinação de cores (onde as próprias cores resultam de combinações/conjugações pigmentares materiais); a poesia, de uma combinação de palavras, e assim, de ideias. De acordo com esta imagem, a criação artística provirá da concretização de um determinado padrão presente na mente do criador. Parece fazer sentido.

Assim, parece que o génio artístico reside apenas na originalidade dos padrões analisados e gerados. Padrões nunca dantes considerados, e posteriormente concretizados. Apenas. Não deixa de ser um praticamente inesgotável "apenas", dado o praticamente infinito horizonte de possibilidades. A criação original artística será, portanto, nada mais que a concretização de um padrão que mais ninguém considerou. Esta é uma imagem positivista da criatividade humana, que provavelmente não repugnará os positivistas. Porque habitualmente se considera o horizonte criacional infinito é que parece confundir-se a ideia de "criação" em sentido estrito, puramente original, e "criação" em sentido lato, de originalidade indirecta.

Não nos iludamos, em qualquer dos sentidos. A persona é capaz de um horizonte de inesgotabilidade ontológica, no qual a priori participa duma dimensão espacio-temporal condicionante (ver Kant), dotada assim de um horizonte práxico específico. Não é mais nem menos que aquilo que é.

--

O homem cria da mesma forma que o Ser supremo (Deus) ?
Só analogamente se pode comparar a criação humana à do Ser.

O homem cria sozinho?
A pessoa cria para. A alteridade é, ao mesmo tempo, destino e cúmplice da criação humana.

O homem criará de uma forma totalmente adequada, na qual encontra plena realização de si próprio?
Não creio. Só se realiza quem salta.

Em nome de que ilusão é que se continua a afirmar insistentemente o poder criador do eu?








O homem não é criador de nada.
Sim, não é criador, de nada.

quarta-feira, março 16, 2005

"Uma outra maneira de ser" - Elizabeth Moon.

Vencedora do prémio Nebula, e finalista do prémio Arthur C. Clarke 2003, “Uma outra maneira de ser” (The Speed of Dark em título original) é uma verdadeira delícia.

A história desenrola-se em torno de um curioso personagem, autista, com uma ingenuidade deliciosa, musicalmente desenhada num ritmo vivo, consciente, bonito. Incrivelmente metódico, ser comportamental e sentimentalmente metódico, é, simultaneamente, a sua particularidade mais apreciável e a causa do seu ostracismo, reforçado na sua natural admiração de padrões não, padronizados.

É-lhe proposta uma cura, um tratamento capaz de reverter e até eliminar o seu autismo. Um tratamento que fará com que ele deixe de ser quem é, para passar a ser outra pessoa mais, normalizada. Entenda-se que o ser não é estanque, mas trata-se aqui de uma genuína perturbação existencial, de repercussões experimentais irrevogáveis. Trata-se de um tudo, ou de um nada.

O vivenciar deste dilema compartilhado por uma série de amigos, o maravilhoso habitat que ele próprio desenhou, e a sua ingenuidade natural convidam o leitor a uma análise da sua própria «normalidade», da sua visão do mundo e da persona:
se da pessoa que enforma o eu, ou se do eu que enforma a pessoa.

“Normal, é um estendal de roupa…”.

quinta-feira, março 03, 2005

Le Gibet.



Que vois-je remuer autour de ce gibet?
FAUST.

Ah! ce que j'entends, serait-ce la bise nocturne qui glapit, ou le pendu qui pousse un soupir sur la fourche patibulaire?

Serait-ce quelque grillon qui chante tapi dans la mousse et le lierre stérile dont par pitié se chausse le bois?

Serait-ce quelque mouche en chasse sonnant du cor autour de ces oreilles sourdes à la fanfare des hallalis?

Serait-ce quelque escarbot qui cueille en son vol inégal un cheveu sanglant à son crâne chauve?

Ou bien serait-ce quelque araignée qui brode une demi-aune demousseline pour cravate à ce col étranglé?

C'est la cloche qui tinte aux murs d'une ville, sous l'horizon, et la carcasse d'un pendu que rougit le soleil couchant.

in "Gaspard de la Nuit",
Louis (dit Aloysius) Bertrand (1807-1841).
Interpretação raveliana de Ivo Pogorelich,
Deutsche Grammophon, 2002.

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sábado, fevereiro 26, 2005


Um estreito degrau de cada vez.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Oito.

A recorrência é amplamente meditativa. A meditação como contemplação de um fenómeno recorrente é focalizada o suficiente para sublimar o próprio eu que se medita. Assim, e não pode deixar de ser curioso, o eu que decide encontrar-se é o que começa por desistir de si. Nada mais interessa senão achar-se, nada mais interessa senão perder-se de si próprio.

Penso que é preciso coragem para alguém se deixar perder na recorrência aparentemente monótona. Por si só, esta não é directamente responsável pelo progressivo abandono do eu resultar na irracionalidade, inevitável, do horizonte de coincidência de opostos. É o eu que escolhe perder-se, se tiver coragem para se encontrar.

O eu sentir-se-á compreendido apenas a partir do momento em que se der conta da sua própria inesgotabilidade. Nesse instante aprenderá que a racionalidade não o abarca, e, se for corajoso, libertar-se-á da resistência à recorrência, e dará o salto.

sábado, fevereiro 12, 2005


A guerra nunca foi o meu Forte.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Nós.

Às vezes parece-me que a loucura é a força consciente de superação da resistência habitualmente estabelecida, inevitável ao sendo. Assim, surge mais depressa como um efeito, que como uma causa. É menos vulgar, porque a vulgaridade é a resistência habitual que se lhe opõe. Ao contrário da outra, esta não é inevitável. Mas se a causa da loucura se identifica com esta superação que a motivou, não pode deixar de ser chamada de menor, já que surgiu de um princípio exterior a si mesma, constituindo uma reacção. Estas são vulgares.

Genuína é a loucura que age e encontra resistência na senda da superação de si própria, mas não se identifica com esta, e apenas é de acordo com a sua natureza. Estas são raras.

terça-feira, janeiro 18, 2005

Tu.

O ser grita por ordem.

domingo, janeiro 02, 2005

"A Fraude do Código Da Vinci" – Erwin Lutzer.

Se existem actualmente várias obras que cumprem uma certa apologia à facticidade da obra de Dan Brown, talvez numa compreensível tentativa de ingressarem na esteira de sucesso e fama desta, Lutzer propõe-nos uma acautelada tomada de consciência acerca da suposta precisão histórica que serve de pano de fundo ao romance browniano. Aborda, entre outras, as ideias de controvérsia mais evidente: o casamento de Jesus e Maria Madalena e os seus respectivos descendentes os quais se misturaram à família real francesa; Maria Madalena como motivo oculto da conhecida Ceia de Da Vinci; a perseguição perpetrada pela Opus Dei, nas saias do imperialismo vaticano, aos líderes do Priorado de Sião, detentores destas e outras verdades últimas que, a serem descobertas, poriam fim ao cristianismo tal como o conhecemos hoje; os quatro evangelistas como falsas revelações da verdade cristã, a qual teria sido revelada e escrita por seitas gnósticas, posteriormente escondida pela Igreja; Jesus mortal, elevado à substância divina afim de servir os objectivos políticos de Constantino no Concílio de Niceia.

O interesse generalizado pelo modelo romantizado da “teoria da conspiração” encontra, de uma forma espantosa, uma infinidade de adeptos espalhada por todo o planeta, como bem comprovam os índices das avolumadas vendas, e até os projectos para, segundo consta, uma produção cinematográfica. Cremos ser revelador. Afinal, interessa realmente saber se conheceria tal grau de sucesso se não interpretasse, de uma maneira muito própria, o fenómeno cristão. Subsistiria como uma das obras mais vendidas se não se apoiasse numa pretensa investigação factual, histórica, (in)sustentável? Este renovado interesse pelo misticismo gnóstico, este ecletismo pós-moderno que procura resposta através da mistura de várias respostas – às vezes para as quais não foram ainda formuladas as respectivas perguntas – reflecte uma atitude produto de uma saturação dogmática católica?

Não cremos que tenham sido questões desta ordem de grandeza essencialmente ontológica que tenham estado na origem do acolhimento geral desta peça. Estruturalmente irrepreensível, o Código mistura, de uma forma inteligente, acção, intriga, mistério, conspiração, servindo-se de um planalto artístico por onde se passeiam personagens de relevo histórico, emblemáticas de tempos áureos de criatividade. A superficialidade com que aborda a fenomenologia cristã é apenas a habitual, que se tornou comum mesmo entre grande parte dos católicos. Se houve quem pensasse que aqui se revelava um mistério que faria desabar os pórticos basilares de S.Pedro, principalmente por parte de alguns ímpetos feministas, quase que apetece dizer: “que chatice, parece que ainda não foi desta”.